Por que a demissão por justa causa é revertida na Justiça do Trabalho?
- Silvia Porto
- 9 de nov. de 2021
- 10 min de leitura
Nesta última semana em que muito se discutiu acerca da Portaria nº 620 do Ministério do Trabalho e Previdência que proibiu a demissão por justa causa de funcionários não vacinados e sua constitucionalidade. O tema sobre a possibilidade de reversão das demissões já ocorrida voltou à tona.

Introdução
O artigo tem a pretensão de trazer alguns pontos para reflexão sobre as principais causas de sentenças na Justiça do Trabalho que revertem a demissão por justa causa, muitos dos pontos levantados não esgotam a discussão acerca do tema, portanto, serão temas de outros artigos mais detalhados no futuro.
Por diversas vezes durante na trajetória como advogada trabalhista empresarial, me defrontei com algumas indagações de clientes:
Por que de demissões por justa causa são sempre revertidas na Justiça do Trabalho? Como minimizar o risco de eventual ação trabalhista questionando a demissão por justa causa incorrida?
A busca de resposta para estas questões estava baseada em insucessos anteriores, a experiência tinha sido traumática e injusta.
Era perceptível que se fazia necessário adequar os procedimentos internos existentes para que situações como essa não mais voltassem a acontecer.
A demissão por justa causa em números na Justiça do Trabalho
Ao contrário do que possa parecer, a demissão por justa causa não está inserida no ranking dos dez assuntos mais demandados na Justiça do Trabalho de 2017 a 2020.
Em número divulgados pelo Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região (Região Metropolitana de São Paulo e Litoral) a demissão por justa causa sequer consta na lista dos assuntos mais demandados.

Referência 1 - Relatórios Anuais do TRT 2ª Região 2017 à 2018
No Tribunal Superior do Trabalho apresenta números mais abrangentes com a soma de todos os processos sobre o assunto no país, conforme dados abaixo demonstrados e a sua posição no ranking nacional.

Referência 2 - www.tst.jus.br/estatística
Por que a reversão da justa causa é tão efetiva?
Diante dos dados apresentados acima, algumas conclusões podem responder esta questão.
A reversão da justa causa é o tema mais bem posicionado no ranking quando se trata da demissão por justa causa, o que significa ser o mais abordado na Justiça do Trabalho com o maior número de ações.
Esse número revela onde reside o problema, os aspectos envolvidos no momento da rescisão do contrato de trabalho, importam na reversão da justa causa aplicada.
É da natureza do ser humano provar a sua inocência, neste sentido, a demissão por justa causa nunca será uma resolução de conflitos pacífica entre as partes.
A justa causa não é uma modalidade de extinção do contrato bilateral existente apenas no direito do trabalho, existe em outras formas de acordo escrito.
No entanto, no âmbito do direito do trabalho a expressão “justa causa” é sinônimo de tensões elevadas e dificuldades de comunicação entre empregado e empregador, ao empregado ainda mais, pois há um estigma quanto a essa ruptura e pelo grau de desonra que costuma envolver, por isso, o tema da reversão da justa causa e a indenização por dano moral decorrente é o assunto dentro nesta modalidade de rescisão com maior incidência de processos, seguido pelo questionamento da própria natureza de gravidade da falta.
As decisões de reversão decorrem por falhas no processo de demissão por justa causa e iremos enumerar as principais causas abaixo, e por consequência, alguns pontos que devem ser observados para evitar situações como as pontuadas:
Principais falhas ocorridas no processo de dispensa por justa causa
a. Incorreto enquadramento
O sistema legislativo brasileiro optou pela enumeração rígida das justas causas, e por consequência, somente ocorrerá quando presentes os motivos relacionados em lei para justificar a rescisão.
O problema na maioria das decisões acerca da reversão da justa causa decorre do incorreto enquadramento. O motivo da dispensa que não está intrinsecamente relacionado ou identificado com as hipóteses previstas na lei.
No aviso de demissão por justa causa, o empregador sequer aponta o ato praticado que foi considerado falta grave, utilizando apenas de expressões do tipo previsto na lei como “mau procedimento” ou “desídia em suas funções”, vê-se que o motivo sequer é explicitado neste primeiro exemplo, e quando o é, está descrito de forma genérica “atestado falso” (como se chegou à conclusão de que era falso?).
Quando estes casos chegam aos Tribunais, falta elementos fáticos para que o Juiz interprete o que efetivamente ocorreu e o verifique se houve correto enquadramento com o rol previsto na CLT.
Descrever de forma clara e integral o fato ocorrido no aviso de dispensa, com rigor de detalhes, e deter os elementos comprobatórios da falta grave cometida (imagens, documentos, depoimentos de outros empregados que presenciaram o ocorrido, entre outras provas produzidas), pode ser a solução para evitar que a demissão por justa causa seja revertida por esta hipótese.
b. Faltas graves que se repelem
Há processos trabalhistas em que dois ou mais atos faltosos são indicados como motivadores da demissão por justa causa, que se repelem e se excluem mutuamente.
Um exemplo típico ocorre quando o empregador alega que os atos faltosos foram desídia, indisciplina ou improbidade e abandono de emprego como causas da rescisão.
Aqui a questão reside em saber o que de fato aconteceu e foi determinante para a justa causa, a desídia (falta que não importa em apenas um ato), a indisciplina (falta que não importa em apenas um ato) e a improbidade (dependendo do ato em uma única oportunidade pode se consumar).
Pergunta-se: qual deles foi determinante para a rescisão? Como poderia existir o abandono de emprego se ele já não existia depois da rescisão pelos motivos acima? O que se deu primeiro entre os três motivos, o que dependia de um único ato ou que importa em sucessivas ocorrências?
E se analisarmos, em sentido contrário, que o abandono de emprego seria a causa determinante, estamos diante de uma situação em que a relação de emprego ainda existia e as faltas anteriores foram perdoadas tacitamente pelo empregador.
Desta forma, recomendamos uma análise criteriosa da causa preponderante, numa linha do tempo dos eventos como veremos mais abaixo, ressaltando que não é a quantidade e sim a gravidade da falta grave que será submetida ao crivo e considerada pelo Judiciário.
c. Local e momento da falta grave
Há faltas graves que por sua natureza somente poderiam ser praticadas no local de trabalho e outras fora do local de trabalho. As que são cometidas fora do ambiente do exercício de suas funções exigem uma gravidade muito maior, suficiente para destruir a confiança do empregador de modo a impedir a continuidade do contrato de trabalho.
Um exemplo de falta grave cometida fora do local de trabalho:
O empregado que furta ou rouba um bem nas imediações da empresa (bicicleta, carro ou moto), é, sem dúvida, um ato grave, porém, não relacionado com o trabalho. Contudo, após o furto/roubo, o empregado leva o bem para a empresa e deixa no estacionamento.
O empregador não sabe que é produto de roubo/furto até ser surpreendido com a polícia em sua porta indagando quem seria o possuidor daquele bem.
A gravidade do fato e o abalo na confiança do empregador, são elementos determinantes para a demissão do empregado por justa causa, embora “estranhos ao trabalho”.
Em outras hipóteses, há uma “zona de influência” onde o ato faltoso pode se dar do lado de fora do portão da empresa, a exemplo de um funcionário que briga com um colega após o fim do expediente.
No primeiro exemplo, o ato faltoso foi “estranho ao serviço” e o segundo a causa está intimamente ligada ao local do trabalho e será considerada como “em serviço”.
Por fim, temos a falta grave cometida durante o intervalo para refeição e descanso. Se o intervalo for feito fora da empresa a infração durante este intervalo não poderá ser considerada como tendo sido cometida “em serviço”, exceto se na zona de influência acima mencionada.
Se o empregado fica no estabelecimento não está à disposição do empregador, contudo, está vinculado ao ambiente da empresa.
Neste caso, há uma relação de meio termo, em que a gravidade da falta cometida é que determinará a preponderância. Na imagem a seguir é possível relacionar o local com a necessidade de comprovar a gravidade da falta.

Figura 1 - Necessidade de gravidade da falta para demissão por justa causa
Mais uma vez, a descrição clara, precisa e integral dos fatos ocorridos é essencial para dirimir qualquer dúvida futura com relação a demissão por justa causa em eventual questionamento.
d. O curso do tempo e atos da falta grave
Na vida prática, há falta do empregado que diante da sua gravidade em uma oportunidade pode dar ensejo a demissão por justa causa, é denominada falta grave de natureza imediata.
Contudo, há situações em que a falta não é cometida em uma única oportunidade, são atos faltosos espaçados no tempo, mas reiteradamente praticados.
São exemplos, a desídia e a prática de jogos de azar, indisciplina ou insubordinação e abandono de emprego, que demandam um aviso prévio de que a conduta não é aceita pelo empregador e existe uma repetição do comportamento.
No exemplo acima, a solução será que cada uma das condutas de comportamento tenha sido efetivamente punida e documentada para comprovar a reiteração dos atos praticados.
Outro tipo de ação do tempo na apuração da falta grave, se denomina como faltas simultâneas, que são aquelas em que uma única atitude do empregado pode coexistir dois, três ou mais atos faltosos.
Um exemplo, é o empregado que é flagrado embriagado no local de trabalho, profere palavras de baixo calão e agride fisicamente seu superior, temos aqui a concorrência entre “embriaguez em serviço”, “indisciplina”, “mau procedimento” e “ofensas físicas”, que surgiram de um único comportamento do empregado.
A importância aqui, reside em descrever o comportamento do empregado ao longo do tempo em um único ato por ele praticado, onde a junção de todos comprova a gravidade da falta para a rescisão do contrato, no entanto, a ofensa física é que tem preponderância por ser de natureza imediata.
Outra hipótese são faltas de encadeamento sucessivo, aquelas em que vários atos são cometidos ligados uns aos outros, sem interrupção aparente, o que é diferente da situação que falamos acima.
Aqui o exemplo de como caracterizar faltas de encadeamento sucessivo: Um empregado é advertido por conversar em serviço, joga uma ferramenta no chão, por consequência, a ferramenta quebra, o superior ordena que ele compareça ao departamento pessoal em razão deste fato, após receber a ordem recusa-se a obedecer e discute com o superior.
Ao ser aplicada a pena de suspensão o empregado rasga a carta de comunicação e agride fisicamente o funcionário do departamento pessoal.
O cuidado aqui é para diante das infrações sucessivas, verificar qual delas será determinante para a rescisão por justa causa. No exemplo, as faltas anteriores à suspensão atuam como mero fato agravante, a justa causa será determinada pelos atos que o empregado cometeu após a entrega da carta de suspensão (rasgar a carta e agredir fisicamente o funcionário do departamento pessoal), indispensável que o ato seja presenciado por testemunhas.
e. Atualidade da falta grave e imediatidade
Assim que tomar conhecimento da prática de um ato faltoso, deve o empregador providenciar a aplicação da penalidade.
Não se pode confundir imediatidade com instantaneidade, aqui reside o erro da maioria das demissões por justa causa, pois não se colheu elementos durante o processo.
É essencial a empresa ter ciência do fluxo para o processo de apuração da falta grave.

Figura 2 - Fluxo do processo interno de apuração da falta grave
O tempo gasto para o processo varia de caso para caso, conforme a complexidade da estrutura do empregador e o cuidado dispendido na apuração da falta.
Por outro lado, não pode haver interrupção do processo acima mencionado desde o conhecimento da falta, passando pelo seu exame e pela ponderação dos fatos que a envolveram até o momento da aplicação da pena.
Quando isso ocorre temos a presunção de que o ato faltoso foi perdoado, ainda que tacitamente.
Lembrando que aqui estamos falando da demissão por justa causa, o que difere de outras penalidades que podem ser aplicadas com maior agilidade.
Rapidez na apuração não é sinônimo de queimar etapas do processo acima mencionado.
f. Interferência do empregador na falta grave
Aqui são causas atreladas a gestão do empregador que podem interferir na prática do ato ou da omissão faltosa, dentre as mais comuns, podemos citar:
ausência de informações sobre a conduta esperada do empregado;
regras de execução dos serviços e/ou dos procedimentos da empresa não definidas;
tratamento desigual aos empregados penalizados na prática da mesma falta sem uma justificativa aparente; e
a sensação de impunidade acerca de determinada falta.
A solução aqui é mais abrangente e passa por questões relacionadas à gestão de pessoas, como capacitação e treinamento, regulamento interno sobre as condutas esperadas dentro da empresa, normas internas sobre a forma como as atividades devem ser desempenhadas, canal de denúncias além de outras medidas de compliance que podem ser implementadas de acordo com a estrutura do empregador.
g. Proporcionalidade da falta e sua punição
Nem toda falta será caracterizadora da demissão por justa causa.
Devem estar presentes na infração três requisitos: gravidade, atualidade e relação causa-efeito.
As faltas mais leves devem ser punidas com penas menos severas, como as advertências (verbais ou escritas) e as suspensões disciplinares (caráter pedagógico do poder disciplinar do empregador).
A demissão por justa causa é a punição máxima que deve ser reservada para as faltas mais graves, guardando uma proporcionalidade entre falta praticada e a punição.
A desproporcionalidade entre a falta e a punição pode assumir dois caminhos e nenhum deles pretendido pelo empregador: rigor excessivo da pena ou benevolência da punição.
No rigor excessivo o empregador corre o risco de ter invalidada a pena aplicada e de ser judicialmente condenado a indenizar o empregado punido com excesso, muitas vezes, arcando com uma indenização por danos morais.
Na benevolência da punição, propicia a indisciplina, ao tornar a punição aplicada ineficaz, branda demais para coibir da infração praticada e afastando do caráter pedagógico. O direito de punir se esgotou a partir do momento em que optou e aplicou a penalidade.
A regra de outro aqui é a parcimônia, não se deve tomar uma decisão com os ânimos exaltados e sem ouvir outras as partes envolvidas na ocorrência (testemunhas do fato), incluindo, o próprio suposto infrator.
Conclusão
É imprescindível ao empregador ter um processo definido sobre a forma como exerce o poder disciplinar. Ele não é absoluto e deve resguardar princípios como o contraditório e a ampla defesa do empregado, atender ao binômio subordinação/autoridade e preservar o caráter pedagógico (preventivo).
Reagindo de forma afoita, o empregador pode queimar etapas num processo que consiste em:
tomar ciência da falta;
verificar os elementos de fato sobre a falta;
oportunizar a defesa do infrator;
apurar e avaliar o ato faltoso; e
aplicar a penalidade.
A falta deve, pelo contrário, ser bem examinada, sopesando as circunstâncias em que o ato foi praticado, verificada a personalidade do infrator, seu histórico profissional na empresa e todos os demais fatores que envolveram a prática faltosa.
Concluído o cauteloso exame (como se a falta grave já fosse contestada) e se municiando de elementos probatórios suficientes para sua tomada de decisão, o empregador estará habilitado a punir o empregado na justa medida.
O processo acima referido nada mais é do que uma sindicância interna para apuração da falta grave, que deve ser composta de acordo com a estrutura e recursos do empregador, estando de posse de documentos e demais provas suficientes para que na eventualidade de eventual contestação judicial venha a comprovar a correição do procedimento.
A descrição clara, precisa e integral dos fatos ocorridos, sua gravidade e os motivos que justificaram a dispensa por justa causa são essenciais para dirimir qualquer dúvida futura com relação a dispensa por justa causa.
Em se tomando a decisão pela demissão por justa causa, deve o empregador estar ciente que a análise judicial é consequência e continuidade da etapa anterior para validação da demissão ocorrida.
E de posse dos elementos probatórios acima colhidos ao longo do procedimento interno, terá mais êxito em comprovar as circunstâncias fáticas, além de comprovar que cumpriu todas as etapas do processo interno em tempo hábil.
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